quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Transvaginal

Eu tinha 11 anos, era véspera do feriado de São João e eu ainda estava com a farda da escola brincando na rua com as minhas amigas Deyse e Denise. Elas estavam acendendo os fogos que tinham ganhado e eu participava com uma curiosidade burlesca, já que meu pai nunca “queimava dinheiro”, nas palavras dele. Quando eu vi chegar, Bólido, o corsa de cor vinho do meu irmão. Ele estava trazendo sua namorada pela primeira vez a nossa casa e para a minha surpresa, veio também o irmão dela. Da esquina eu vi aquele menino lindo, descer do carro. Eu sempre tive na cabeça que eu iria viver uma história de amor bem surpreendente e me encontrava absolutamente pronta para que o meu amado me reconhecesse tão logo me visse, mas não naquela hora fedendo a fumaça. Não naquela hora com a farda da escola e os pés descalços. Não naquela hora com o desodorante mais do que vencido e a cara meio cinza de pólvora queimada. Enquanto as pessoas se cumprimentavam na frente de casa eu corri e entrei no banheiro pra começar meu ritual de beleza que incluía primeiramente fazer cocô. Sim, fazer cocô! Nenhum encontro romântico sobrevive se houver o menor sinal de comida em estado de putrefação nas minhas tripas. Graças a Deus a minha família é grande e até beijar todo mundo, daria tempo eu me despedir de meu cocozinho sem deixar nenhum vestígio já que eu estava usando o banheiro da copa, onde todos iriam jantar logo mais. Impossível um encontro amoroso com o local de refeições cheirando a bosta. Mas aí tivemos o primeiro problema, não desceu. Casa antiga, com pouca manutenção hidráulica, a bosta ficou boiando. Me encarava zombando por eu não ter comido mais frutas e fibras. Sorte minha que a descarga já era quebrada e eu pude deixar a água escorrendo enquanto eu dava cabo do resto do meu plano embelezador, quem sabe um milagre aconteceria enquanto eu tomo o resto do banho e por insistência, a merda fosse embora, não tinha como dar errado. Lá se foi shampoo, creme rinse e várias espumas pelo box. Já me imaginando besuntada de monange azul tal qual a Xuxa e um cheiro inconfundível de Taty no ar. Saio do banho e qual a minha surpresa ao ver meu cocozinho boiando no chão. Sim, a privada transbordou, que desagradável! E agora meu Deus? A única saída possível era catar com a mão e jogar no ralo do chuveiro mesmo. Dessa vez, agradeci por não ter comido tanta fruta e fibras e fui socar o troloço no ralo estreito do box enquanto eu escutava as conversas animadas chegando à copa. Foi... Depois de vários minutos enxugando o chão com piso de banho e depois de muito lavar a mão, vi que era inútil lutar contra aquele mal cheiro e resolvi me entupir de alfazema. Sim, Taty seria muito pretensioso e ia ficar na cara que eu tava querendo chamar atenção, alfazema não, alfazema todo mundo usa antes de dormir. Talvez eu tenha exagerado e talvez não tenha adiantado muito, pois o cheiro de bosta durou ainda alguns dias na minha mão. Finalmente sai do banheiro, linda, plena e cheirosa para ser vista por aquele moço absolutamente belíssimo. Moreno e árabe e com cicatrizes pelo rosto que lhe davam um charme mais do que especial. Ali eu vi que meu amor tinha sido reivindicado por toda a eternidade por aquela figura doce e maravilhosa. Nos apresentaram formalmente e ele me deu um beijinho molhado na bochecha. Ele devia ter uns anos a mais, alias, vários, e provavelmente deve ter achado um terror cumprimentar aquela criança banhada em perfume porque logo atacou a rinite. Mas eu já via o rosto de nossos filhos e o Change Dragon triste atrás da porta por ter perdido seu lugar no meu coração quando os meus olhos cruzaram o de Celsinho, vamos chamar ele assim. Não demorou muito para que aquela cena fosse interrompida por pedidos de toalhas já que o trio tinha passado um dia inteiro na estrada e estavam cobertos de suor e poeira. E também não demorou para que Celsinho voltasse do chuveiro pedindo desculpas e anunciando que havia entupido o ralo. Meu pai, “o consertador”, me entregou de bandeja e falou que devia ser cabelo no ralo, que eu lavava muito a cabeça e que por isso já estava cheia de impingem e que ia limpar. Bom, daí eu fui dormir porque seria humilhação demais ver meu cocô emergir do ralo assim na frente de toda família que eu tinha e da que eu queria ter. Resumindo, foi o feriado mais maravilhoso que eu tive lembrança na puberdade e depois que eu soube que o namoro do meu irmão tinha acabado, eu fiquei completamente inconsolável por alguns minutos até aparecer outro amor de minha vida, pai de meus filhos, mas aí já é outra história, alias outras porque eu era muito apaixonadeira. Anos depois, mais precisamente 20 anos depois, já casada e com filho pequeno, soube que Celsinho estava morando na mesma cidade que eu. Era médico e tinha recém aberto uma clínica de imagem na minha cidade. Mas que sorte a minha, estava com a requisição de um exame para ser feito ainda aquela semana. Marquei e fui. Cheguei lá, me deram um roupão pra vestir, sala em meia luz e acho que até uma bossa nova no som (talvez não) entra ele: Celsinho, meu amor de minha vida aos 11 anos, meio careca, meio barrigudo, e com algum traço de demência, pois não se lembrou de mim, como pode isso? Leu meu nome na ficha e perguntou o que eu era de meu irmão, eu falei: “Vc não se lembra? Eu sou a irmã caçula dele. Aquela que cagou no ralo do banheiro antes de vc tomar banho naquele São João de 1992” mentira, óbvio. Me limitei apenas aos dados objetivos, pois aquela cena já era deveras constrangedora. Eu estava pelada e com as pernas arreganhadas, completamente fragilizada pela situação e pelo ar condicionado gelado que me fazia tremer dos pés à cabeça. Neste momento eu pude me arrepender. Me arrependi por ter sido uma boba em 1992 e por ser uma idiota em 2012. Deveria ter ido fazer o exame com o médico de sempre, pensei. Enquanto isso, comecei a sentir a mão de Celsinho levantando o lençol que cobria minhas pernas e então a ficha caiu, não poderia ser pior, pensei. Sem acreditar, eu perguntei: ué, é por baixo? Enquanto ele mirava minha xota achando o caminho praquele mouse comprido com uma camisinha na ponta e respondia com alguma impaciência: é uma transvaginal!

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